Carta à minha filha por nascer.

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Querida filha, daqui mãe.
Escrevo-te pela primeira vez porque acho que chegou a altura de me conheceres.
Aconteceste para mim antes de aconteceres para o mundo. Aconteceste no meu corpo, no meu coração, na minha cabeça, nos gestos que embalam o meu ventre. Aconteceste quando me peso, quando me deito, quando aperto os sapatos. Aconteceste quando lavei saladas, não comi carne mal passada e quando ouvi o teu coração. Quando te vi a preto e branco pela primeira vez, pela segunda e todas as outras. Aconteceste no meu pensamento, nos meus planos, [na minha ausência deles], nos meus receios. Aconteceste mesmo ainda antes de aconteceres.
Queria poder dizer-te que vais viver num planeta perfeito, onde não existe dinheiro, infelicidade, contas para pagar, doenças, morte, tragédias, e um dia a dia alucinante. Que não há stress. Qiue não há guerra, desigualdades, animais em extinção, florestas a desaparecerem, crimes de todas as espécies. Queria dizer-te que não há maldade, nem inveja, nem competição, nem falsidade. Que não há frio, nem calor a mais. Que a noite não te vai meter medo, que os dias são sempre de sol. Que não há desperdício e que há partilha. Que as pessoas só têm lados bons e que nunca ninguém te vai passar a perna. Que vais fazer da tua paixão profissão, que não vais ter medo. Que tudo é seguro. Que não há químicos, que não há vícios, que não há armas, que não há interesses. Que a aventura dá sempre bons resultados, assim como a bondade, o amor e a verdade. Queria dizer-te que todos os teus sonhos vão acontecer, que a vida é música e festa e que nunca haverá obstáculos. Que nunca te vais sentir numa encruzilhada. Queria dizer-te que te vão dizer sempre tudo honestamente, calmamente, frontalmente. Que vais ter sempre uma oportunidade, que vão sempre acreditar em ti. Que vai haver sempre uma solução. Queria dizer-te que nunca vais cair, que nunca vais sofrer. Que te vão amar incondicionalmente. Que todos os dias te vais levantar com uma garra sem fim e que nunca te sentirás cansada ou desanimada. Queria poder dizer-te que eu vou estar sempre a sorrir, que vou ter sempre paciência, que nunca vou ralhar, ser injusta e que vamos sempre estar em paz uma com a outra. Queria dizer-te que vou estar sempre atenta e que te vou sempre amparar, que resolverei todos os teus problemas. Queria dizer-te que vai estar sempre tudo limpo, a brilhar, que terás sempre tudo o que sonhares, que vais para a melhor escola, que te vou pagar a universidade. E que depois de tudo isto vais ser bem paga no sítio onde escolheste trabalhar. Que vais sempre gostar do que fiz para o jantar ou do que mando para o lanche da escola. Queria dizer-te que vou dar os melhores conselhos, que vou saber estar calada. Que vou estar sempre certa. Que nunca te vou traumatizar, magoar, castigar, desiludir. Que morrerei velhota quando já não precisares de mim.
Queria dizer-te tudo isto e muito mais mas não posso. Mas queria que soubesses já que para mim aconteceste mesmo ainda antes de aconteceres.
E que a isso se chama amor.
Adoro-te, mãe.

[Da coleção Cartas aos meus filhos]

Foto: Teresa Noéme

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